A nossa escolha pela solidão

quarta-feira, 29 de abril de 2015


    Eu sinto você. Abro os olhos e te observo parada na janela, silenciosa. Os primeiros raios de sol tocam sua pele, mas só eu sei que na verdade eles te queimam. Eu escuto você. Eu consigo ouvir o seu suspiro carregado de pesar ao sentir que mais um longo dia se inicia ao leste. Você caminha até o guarda-roupa e fica ali, pensativa, indecisa sobre qual será a máscara da vez. Por fim, você decide usar a mesma da semana passada. Aquela que você usou durante o último mês inteiro. Você tranca a porta de casa e espera que todos os seus receios permaneçam lá dentro, mas eu vejo o terror estampado nos seus olhos no exato momento que você coloca o pé na calçada. Seus amigos te dão bom dia, e apesar de ter prometido a si mesma que seria mais sociável, eu sinto o medo que te atinge ao falar com os outros. Sim. Seus amigos agora eram "os outros". Todo o mundo havia se transformado em "os outros". Um bando de seres humanos com potencial para te machucar se você permitisse que eles se aproximassem o suficiente. É, eu entendia você.

    Na hora do rush, enquanto espera o ônibus, tão rodeada de gente, você fecha os olhos e se esconde atrás dos fones de ouvido na expectativa de que todos desapareçam. Pessoas. Eu sinto o seu pânico quanto às pessoas! Você teme que elas te destruam, num piscar de olhos, assim como todos "os outros" fizeram. Você respira fundo e aumenta o volume do som, tentando afastar o pavor que te esmaga com punhos fortes. Você treme, apesar do calor que faz nas ruas, mas eu entendo que o que te causa calafrios é a frieza dos seres, e não o clima. Pessoas eram cubos de gelos afiados, mal lapidados e cortantes.
    Segura dentro da sua redoma, você observa a vida dos ‘‘outros’’ acontecendo lá fora. Você já sabia que eles lutariam entre si até que um destruísse o outro por completo. Era sempre assim! E ai de quem entrasse nessa batalha tão cheio de calor e desprotegido! Mas você já o vez, diversas vezes, e eu consigo ver daqui as suas marcas de luta. Você tenta escondê-las usando essas mangas longas, mas, ainda sim, eu posso vê-las espalhadas pelo o seu corpo. Elas marcam o seu coração machucado, e maculam a sua alma. Você se sente um monstro por possuí-las, e quando se olha no espelho você se acha horrível. Talvez ninguém nunca tenha te falado isso, mas eu acho as suas cicatrizes sagradas. Uma prova eterna de que você sobreviveu a cada punhalada. Só que você não sente orgulho delas, pelo contrário, você sente vergonha. Como se você fosse culpada por cada uma delas. Eu sei. Você acha que ninguém escuta o seu clamor, mas eu escuto. Toda noite.

    Eu toco suas feridas e percebo que as cascas se tornam cada vez mais grossas sobre a sua pele calejada. Você as adquiriu na tentativa de manter perto as pedras de gelo cortantes, eu sei, e você também sabe. Mas não existe cicatrização que aguente tantos cortes, e não há coração que permaneça quente rodeado de pessoas tão frias. Você dispensa meus comentários e tenta se focar no trabalho, mas as letras se embaralham na sua frente. Você aperta os olhos e se esforça, porém os minutos passam lentamente. No final do dia você conta uma piada ruim e sorri, tentando se livrar da culpa por não ser mais agradável, mas, diferente deles, eu posso ouvir o desespero na sua risada.

    Alguém te chama para tomar uma cerveja no barzinho da esquina, e logo você se lembra de que tudo começa desse jeito. Com um petisco de nada. Era sempre assim!  Você vai lá, conta suas histórias, confia nas pessoas, se acostuma com elas e, não muito tempo depois, você acaba sozinha mais uma vez. Você falaria sobre sua vida, e daqui um mês você estaria contando a mesma coisa para outras pessoas, e assim consecutivamente. Você estava cansada disso! Exausta de começar de novo a cada seis meses. Agora você nem se dava ao trabalho. A preguiça de construir algo só pra ver aquilo ser destruído com o mais simples vento era maior do que a sua carência. Só existe uma coisa na vida mais inevitável do que novos começos, a tragédia que sempre acompanha todo fim. E foi isso que te deu toda a firmeza na hora de dizer "Não. Obrigada. Estou muito ocupada hoje." Mas a verdade é que você ficaria sozinha e tomaria um remédio para dormir assim que chegasse em casa. Você os toma toda noite na esperança de que a vida passe depressa sem precisar ser vivida. Viver significava sentir, e, ultimamente, você se recusava a sentir qualquer coisa. O preço era alto demais e você não aguentava mais pagar por aquilo com lágrimas. Seu telefone toca e alguém te chama para ir ao cinema. Você vai, é claro, mas vai sozinha! Outro ‘não’ espalhado gratuitamente. Não. Não. E não! Eu conseguia entender a sua lógica. Você os repetiria até que não houvesse mais convites.
    Você exclui suas redes sociais e some da internet, e eu sei que você até teme que todos te esqueçam, mas você precisa, desesperadamente, que eles te deixem em paz. Você encontrou paz na solidão, não é mesmo? Você havia feito dela a sua melhor companhia. Não havia brigas, choro, expectativas, frustrações, ou estresse. Se a solidão tivesse uma forma física, ela seria uma boneca inflável, muda e sem sentimentos. Você ri da minha piada e eu vejo o quanto é muito mais fácil pra você quando estávamos sozinhas. Você relaxava, pois não havia a mínima chance de ‘‘alguém’’ te machucar quando não existia ‘‘ninguém’’ por perto. Você patinou no começo e caiu diversas vezes. Eu sei! Perdida sem saber o que fazer com tanto tempo livre, e com tantos espaços vazios aí dentro. Mas você se acostumou com tudo isso, e eu morri de orgulho ao perceber que você aprendeu a rir dos seus próprios tombos.
   Caminhei ao seu lado enquanto você ia para o banho, por que eu sei como a água quente te acalma. Eu entendo você. Eu sinto os seus medos e reconheço os seus sinais de exaustão. Você se despiu da pesada armadura que te vestiu durante o dia e eu fiquei encostada no box te observando. Analisando o mural de fotos que você mantém nas paredes da sua memória. Você coleciona recordações de uma garota sonhadora e feliz, que um dia confiou sem medo e amou ardentemente. Você morde os lábios e balança a cabeça, tentando afastar a saudade que te aflige. Você a esconde nas profundezas do seu ser, e me faz jurar de que aquilo será o nosso pequeno segredo. Você desaba, e eu posso sentir o choro que queima na sua garganta. Você está exausta dessa luta diária em tentar não se lembrar daquilo que você não consegue esquecer. Machucaram você, profundamente, eu sinto isso. E eu sinto muito por isso.

    Você se encara no espelho e, apesar do vidro embaçado, eu me vejo refletida em seus olhos. Eu sinto você, vejo você e escuto os seus pensamentos, pois, na verdade, somos uma só. No meu desejo em te manter por perto, eu adquiri vários machucados e, posteriormente, cascas pontiagudas e geladas. Pessoas sem sentimentos feriram você e, no desejo de não sentir mais dor, você arrancou o seu coração e o escondeu para que nunca mais pudessem machucá-lo. Eu sei, pois eu também fiz isso! E foi nesse exato momento em que, por pura proteção, nós nos transformamos nos monstros que passamos metade da vida prometendo que nunca nos tornaríamos.

Saudade sem prazo de validade sofre mutação dentro da gente

domingo, 19 de abril de 2015


Eu odeio balada. Nossa! E como. Aquele bando de gente estranha se esfregando. Trombando, uns nos outros, na expectativa de que uma daquelas trombadas se transforme em um encaixe. Eu iria matar a minha amiga assim que chegássemos em casa. Mas agora ela estava pulando com uma galera que eu nunca vi na vida, e, provavelmente, nem ela! Joguei fora o copo com vodca que tentaram me empurrar no bar, e beberiquei o suco com gelo que eu carregava. Argh! Até o suco daquele lugar era ruim. Jesus Cristo!
- Ok. E se eu estivesse exagerando? Afinal, eu já tinha ido a outras baladas antes. Quem sabe eu só estava ficando velha, ou amargurada. Provavelmente as duas coisas. Bebi mais um pouco do suco que continuava ruim. Certo. Talvez um táxi não custasse tão caro até em casa, pensei esperançosa. Mas me lembrei com tristeza que eu estava quebrada! Quem nunca? Não dava nem ir embora, pois era a tal amiga que estava pagando hoje. Sem esperanças, caminhei para um cantinho seguro e me encostei em uma pilastra, torcendo para que aquilo acabasse logo. Alguém gritou algo sobre como tinha ficado legal a reforma daquele lugar. E caramba! Foi então que eu percebi que já estive naquele mesmo cantinho antes! Com uma antiga namorada. Coisa de um ou dois anos atrás. Eu mal me lembrava mais. Engraçado como nada em mim doeu, apesar de ela ter destruído a minha vida. Não é estranho o modo como tudo passa? Tanto a dor, quanto o riso. As coisas, simplesmente, deixavam de ter tanta importância. Passam de tudo para nada, e se perdem em alguma dimensão entre o tempo e o espaço. Ri do destino e bebi mais um gole do meu suco que agora era quase água. Será que um dia eu também te esqueceria? Será que eu deixaria de te ver em cada canto? Mas eu já sabia a resposta para essas perguntas. Nossas memórias não estavam espalhadas em cada esquina, até porque nós não tínhamos, praticamente, nenhuma. Só que para o meu eterno desgosto e alegria, você estava em cada canto dentro de mim.
Estava um calor insuportável! Rodei com os olhos aquela pista e me perguntei por que as pessoas se produziam tanto, só para vir tomar um banho de suor naquele cubículo apertado. Foi assim que, sem mais nem menos, eu senti borboletas no estômago. Minhas pernas tremeram e meu mundo caiu! Ai não! Mas que droga! O que caiu foi o meu copo! Pés encharcados a parte, eu não podia te perder de vista! Malditas cabeças que embaralhavam minha visão. Me xinguei por não ter vindo de óculos, e te amaldiçoei por sempre aparecer nas horas mais impróprias. A-há! Eu vi você. De costas, claro. Cabelos pretos como a noite, curtos como a minha grana, e a pele branca como o gelo do meu congelador que eu preciso descongelar a anos. Droga! Foca no foco! O mundo entrou em câmera lenta, mas você pulava como uma louca. Jogava os braços pra cima, balançando aquela pulseira-relógio escura e grossa que só você tinha. Você passou a mão no cabelo, afastando eles da nuca, bagunçando-o, e eu me lembrei de como EU gostava de fazer aquilo. Eu amava bagunçar você todinha, um puro reflexo do que você fazia, e ainda faz, comigo. Levei o suco à boca, na expectativa de tentar molhar a minha garganta tão seca. Mas o meu copo, e mundo, estava no chão. Eu não tinha mais nada em minhas mãos, nem mesmo você. Cerrei meus olhos e fui me apertando entre a multidão. Atraída pelo imã natural e filho da puta que eu tenho em relação a você. Meu coração palpitou, freneticamente, e não era pela batida forte da música que tocava. Você continuava dançando e gritando como uma maluca, e eu não contive o meu sorriso, pois eu sei que você jamais dançaria daquela forma. Você nunca saía da casinha, mas era gostoso te ver ali daquele jeito. Inconscientemente, lá estava eu do seu lado, petrificada ao olhar para o seu rosto. O mesmo batom vermelho, o lápis no olho delineado da mesma forma, e uma blusa cinza quase parecida com aquela sua do Elvis. Eu, ainda parada como uma estatua, senti-me rachando, gradativamente, no instante que você olhou para mim e sorriu. Era você. Em carne, osso e cabelo. Mas não era você no sorriso, tal pouco no brilho dos olhos, apesar de os dela também serem pequenos. Não era você e pronto! E, independente do que eu fizesse com ela, nunca seríamos nós. Eu e você. Entende? Uma fumaça se propagou pelo ar e espaço. Meus olhos arderam, mas nada tinha a ver com aquela camada branca e espessa. Pisquei, repetidas vezes, e senti gotículas se espalhando pelo meu rosto. E não, não eram de suor. Meus pulmões foram sufocados e o meu coração esmagado no peito. Aproveitei a deixa e me afastei daquela versão pobre de você. Talvez uma versão genérica fosse melhor do que nada. Mas a gente nunca deve se contentar com o pouco. Não fora isso que eu aprendi com você? Voltei para o meu cantinho, aquele que não me trazia dor alguma ao me lembrar da minha ex. Chutei para longe o meu copo (mundo) que continuava no chão, já todo destruído. Peguei mais suco e fui chupar gelo no meu canto. Dispensei outro alguém, mas dessa vez não me senti nem um pouco orgulhosa de mim. Afinal, você ficaria? Eu e minha mania feia de sempre pensar no que você pensaria. Sem falar da minha esperança idiota de que você me ligaria um dia, e eu te contaria que estou há meses sem ninguém. Você ficaria feliz com mais uma certeza de que sou sua? Só sua! Como nunca fui de ninguém. Mesmo que você tenha me abandonado, e nunca tenha olhado para trás, eu ainda era sua. Fiel, indubitavelmente, aos meus sentimentos por você. Você ligaria. Não ligaria? Peguei meu telefone e verifiquei se eu ainda estava bloqueada nas suas redes sociais. A tela sem cor e sem vida me repetia que eu continuava bloqueada, principalmente, da sua vida. Como um vírus tão ruim que você repele para longe com cara de nojo. Não, você não ligaria. Nunca mais. E a vida tinha que seguir. Ela sempre segue, e quando você se recusa, ela te mete o pé na bunda e te empurra. Para onde exatamente, eu não sei dizer. Tinha medo de que a minha vida não seguisse para muito longe caso eu continuasse te vendo em cada rosto e em cada esquina.  Sabe quando você tenta seguir, mas você se cansa da tentativa antes mesmo de tentar? Você já sabe que nada, absolutamente, nada te preenche! E quando nada nos preenche, só a saudade é densa o suficiente e capaz de ocupar aquele espaço vazio. E saudade sem prazo de validade sofre mutação dentro da gente. Transforma-se em um monstro horrível que nada mata! Ele se alimenta das nossas esperanças, e corroí a nossa alma, dia após dia, em uma agonia eterna. Alguém cutucou meu braço, anunciando que já era hora de ir embora. Percebi que a pista já estava praticamente vazia, e que a sua versão genérica já tinha partido. Meus pés doíam, e antes fossem só eles. Concordei com a cabeça e deixei aquele pesadelo para trás, mas eu sabia que não havia alivio para mim, pois você me seguiria até em casa mais uma vez. 

Jessy Mendes






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